O território e a dominação social
Por Flávio Villaça – FAU/USP
"Neste artigo.
procuramos investigar a participação do território urbano – ou o espaço urbano
– tanto na luta de classes como na luta pela dominação social. Diz Castells:
Isto
equivale a conceber a natureza como algo inteiramente modelado pela cultura, ao
passo que toda a problemática social tem sua origem na união indissolúvel entre
ambos os termos, através do processo dialético por meio do qual uma espécie
biológica particular (particular uma vez que está dividida em classes), ‘o
homem’, se transforma e transforma o próprio meio ambiente em sua luta pela
sobrevivência e pela apropriação diferenciada do produto de seu trabalho.[1]
A que “trabalho” se
refere Castells? Pode ser o trabalho em geral, o trabalho necessário à
reprodução da força de trabalho. Mas, a nosso ver, não é esse o “trabalho” a
que se refere Castells. Para entendê-lo, temos de abordar um tema que provocou
o grande avanço intelectual ocorrido nas décadas de 1960-1970 no campo da
geografia – a ciência que estuda o espaço humano – e que a transformou
profundamente. Esse avanço foi representado pela ideia de que o espaço urbano é
produto do trabalho social humano. Segundo essa compreensão, o “trabalho” a que
se refere Castells é aquele desempenhado na produção do espaço urbano, enquanto
produto do trabalho. Produto produzido, porém irreproduzível pelo trabalho
social, dirá Marx.
O outro aspecto
importante das palavras de Castells é a “apropriação diferenciada do produto do
trabalho”. A importância disso reside no fato de que está aí a origem da luta
de classes. Considerando-se o espaço urbano como o produto do trabalho,
chegamos à ideia de Castells de que há uma luta entre as classes sociais
visando à apropriação do produto diferenciado.
Qual é esse produto?
Como se dá essa luta? E de que forma ele participa dessa luta pela sua
apropriação diferenciada? Em trabalho anterior, analisei que esse produto não
são os edifícios de escritórios ou de residências, tampouco as ruas, as praças,
os shopping centers ou as fábricas[2]. Vimos que esse
produto é a localização, ou a “terra-localização”, seguindo o pensamento de
Marx, que criou as expressões terre matière e terre capital.
A terra-localização é
um produto do trabalho absolutamente original e cheio de peculiaridades, a
começar por esta que acabamos de mencionar: sua irreprodutibilidade. Ao
contrário dos demais produtos do trabalho – edifícios, sapatos, celulares, computadores,
automóveis etc. –, que podem ser reproduzidos às centenas ou milhares, a
localização não pode ser reproduzida. Se ela é única, não pode ser distribuída
equitativamente por entre os seus consumidores. Em consequência – e aqui está
outra particularidade desse produto –, isso a torna inerentemente conflituosa.
Outra
particularidade: ao contrário dos demais produtos do trabalho social, a
terra-localização (de agora em diante, simplesmente “localização”) não circula
por entre seus consumidores. Estes é que por ela circulam, o que é uma
diferença fantástica. Com a circulação dos consumidores, a questão dos
transportes aparece como vital. Outra característica é sua indispensabilidade.
Qualquer ser humano pode viver sem celulares, sapatos, automóveis etc. Pode
viver até sem edifícios, abrigando-se em cavernas. Entretanto, nenhum ser
humano pode viver sem se apoiar sobre um pedaço de chão, de território. No
capitalismo há mais que isso. Nenhum ser humano pode viver ou trabalhar
sem comprar, sem pagar por (a
vista ou a prazo) um pedaço do planeta. Mais uma particularidade: todos os
demais produtos do trabalho não têm vantagens e desvantagens. Dois automóveis
do mesmo modelo, ano e marca, são iguais. Um não tem vantagens
ou desvantagens sobre o outro. O mesmo ocorre com celulares, edifícios,
computadores etc. Com as localizações, porém, isso não acontece. Todas elas
apresentem vantagens e desvantagens para seu ocupante (que pode ou não ser o
proprietário). Essa vantagem ou desvantagem está no tempo de deslocamento
despendido para alcançar outras localizações, ou seja, para usufruir dessa
localização.
Aqui entra em cena a
questão da segregação urbana. A segregação é um artifício usado pelas classes
sociais mais poderosas para minimizar os próprios tempos de deslocamento
associados a todas as localizações; o dispêndio desse tempo é sempre uma
desvantagem de toda e qualquer localização. Em essência, o objetivo da
segregação urbana é a minimização dos tempos de deslocamento associados ao
exercício das diversas atividades urbanas, sejam elas produtivas ou não. É
impossível eliminar esse tempo, então as classes sociais disputam ferrenhamente
sua otimização, aprimorando e disputando os meios de transportes, tanto os
veículos como as vias e sua gestão.
Todos os deslocamentos
são feitos entre dois pontos: um é a moradia (origem do deslocamento) e o outro
pode ser o local de trabalho, de compras, de estudo, de diversão etc., ou seja,
o destino do deslocamento. Os especialistas em transportes urbanos pesquisam
muito esses tempos e esses polos, em pesquisas chamadas O-D (origem e destino).
Vamos ver o papel do território urbano e da segregação social nessa ferrenha
disputa aqui mencionada.
Na disputa pelas
localizações do território urbano, a classe social mais poderosa se apropria
daquela que tem mais vantagens (para elas) e menos desvantagens (para elas).
Nessa disputa, a vantagem/desvantagem mais importante a ser manipulada é o
tempo despendido no deslocamento humano (mas não no de carga) associado a toda
localização. Considerando que é impossível eliminar a desvantagem, as classes
sociais fazem o possível para minimizá-la. O tempo de deslocamento é uma
vantagem muito importante, particular e irreproduzível, mas não é a única.
Uma coisa é certa.
Qualquer vantagem de uma nova localização tem de ser confrontada com os novos
tempos de deslocamento a ela associados. Morar em lote grande e com verde
(dentro e/ou fora do seu quintal), clima agradável etc. são outras vantagens…
dependendo da localização. O consumidor pode querer trocar essa vantagem pela
desvantagem de um maior tempo de deslocamento. A vantagem de um lote maior pode
ser reproduzida pelo trabalho, mas sua localização não. Até mesmo o clima pode
ser produto do trabalho. Não precisamos nem falar do aquecimento global, e é
sabido que desmatamento pode afetar os ciclos da chuva e a temperatura. Como já
mostramos, o clima, nas nossas cidades, não é obra da natureza, mas sim dos
homens.
Não podendo atuar
diretamente sobre o tempo (de deslocamento), as classes sociais atuam sobre o
espaço (urbano, no caso). Nunca, como nesse caso, fica tão clara a relação
entre tempo e espaço.
Muitas famílias
trocam o aumento dos tempos de deslocamento por vantagens (reproduzíveis),
desde que accessíveis; as classes mais poderosas manipulam, assim, a formidável
infraestrutura voltada para o automóvel, seja física (rodovias, rodoaneis,
estacionamentos privativos etc.), seja humana (fiscais, multas, radares,
“marronzinhos”, Departamentos de Operação do Sistema Viário, Departamento
Estadual de Trânsito, mão e contramão de ruas, Zona Azul etc.). É verdade que
essa parafernália de recursos físicos e financeiros não é voltada
exclusivamente para o transporte individual (serve também para empresas e
transportadoras em geral), mas é inegável que esses recursos são
majoritariamente destinados a facilitar o uso do automóvel. Mesmo quando
aparentemente voltadas para os caminhões, por exemplo, a atuação do poder
público visa a melhor utilização do automóvel. Para entender esse fenômeno,
basta observar onde estão localizadas as placas de “tráfego proibido para
caminhões” existentes em São Paulo.
Há várias disputas
que se manifestam na luta de classes em torno do tempo de deslocamento. A
disputa é entre, de um lado, o transporte público/coletivo e, de outro, o
transporte individual/privado e, obviamente, entre os recursos humanos e
financeiros a eles destinados, seja às suas estruturas físicas (vias
expressas versus metrô; rodoanel ou
rodovias versus ferrovias), seja ao seu financiamento. Tudo
isso disputando recursos públicos, sob o comando da classe dominante.
Também associada a
essa disputa sobre o tempo de deslocamento está a segregação social. Esta não
se manifesta apenas no agrupamento das moradias das classes de mais alta renda
numa parcela do território, mas também em todos os elementos da estrutura
urbana, inclusive nos demais bairros e nos principais centros. Daí decorre que
o processo de segregação urbana jamais será explicado e compreendido se não se
analisar as transformações dele decorrentes em todos esses elementos. Quase
todas as tentativas de elucidação da segregação urbana (atuais ou do passado)
não levam em conta a inter-relação entre os movimentos das segregações dos
bairros residenciais e a dos demais elementos da estrutura territorial urbana.
A segregação urbana é
tão mais acentuada quanto maior for a desigualdade social na cidade
considerada. Ela é mais acentuada nas metrópoles brasileiras do que nas da
América do Sul branca. Mais acentuada nesta do que na Europa Central etc.
Talvez o Rio de Janeiro seja a nossa metrópole onde a segregação é não só muito
acentuada, como também nacionalmente conhecida. Os mais ricos moram na Zona Sul
e os mais pobres moram nas Zonas Norte e Oeste. Em São Paulo ela é bem menos
conhecida, embora exista uma notável segregação dos mais ricos no quadrante
sudoeste da cidade.
A segregação social
urbana tem suas manifestações ideológicas–, isto é, pensamentos difundidos pela
classe dominante e que se tornam dominantes visando tornar a dominação mais
palatável e aceita pelos dominados. A mídia falada e escrita é, no Brasil, um
grande difusor da ideologia dominante. Esse pensamento aparece na própria
concepção da cidade e seus elementos. Exemplo disso são as expressões “Centro
Velho” e “Centro Novo”, assim como falar em “deterioração” do Centro. Não vamos
abordar esse tema. Apenas vamos ilustrá-lo com uma manifestação gritante e
recente. O que é considerado “periferia” em São Paulo? Em teoria, são os
bairros afastados, em áreas subequipadas, ocupadas por classe inferior à média
e morando em imóveis irregulares. A Freguesia do Ó, em São Paulo não se
enquadra nessa definição. Está a 8 km em linha reta do centro da capital (Praça
da Sé), é um bairro tradicionalíssimo, de classe média, onde a maioria das
moradias tem mais de noventa ou cem anos de idade – portanto, são anteriores ao
primeiro Código de Obras da cidade, que foi a Lei n. 3427 de 1929[5] e que por isso
não podem ser chamadas de “irregulares”. Por outro lado, a Praça Pan Americana,
a City Butantã ou o Alto da Lapa estão a 8,5 km da Praça da Sé; o Brooklin
Paulista está a 9 km e o Morumbi (bairro do estádio do São Paulo Futebol Clube)
está a 10 km. Tais bairros, assim como Alphaville ou Granja Viana, jamais
seriam chamados de “periferia” pela mídia. No entanto, a Freguesia do Ó é
chamada de periferia. O jornal Folha de S. Paulo do
dia 16 de fevereiro de 2015 apresentava na p. B-6, do Suplemento Carnaval, a seguinte manchete de cinco (cinco!) colunas:
“Folia da periferia”. Dizia a lead: “Bloco de rua
da Freguesia do Ó recusa patrocínio e valoriza o bairro com marchinhas e
público família”.
Notas
[1] CASTELLS,
Manuel. La cuestión urbana. Cidade do México: Siglo XXI, 1978,
p. 142. Aqui em tradução livre.
[2] Ver VILLAÇA,
Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, p. 37-58,
jan.-abr. 2011.
[5] Cf. SOMEKH,
Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São
Paulo: Editora Mackenzie/RG, 2014, p.117.
Fonte do artigo
VILLAÇA, Flávio. O
território e a dominação social. In. Revista Margem Esquerda n. 24, jun. 2015.