Globalização, ciberespaço e meio técnico científico informacional
Autor: Herodes Cavalcanti
12/03/2025
Importantes mudanças no metabolismo do capital ocorridas no mundo desde o final dos anos 1970, avanço das tecnologias da informação, alterações no sistema produtivo e avanço do neoliberalismo, redefinem os conteúdos do espaço geográfico. A seguir realizamos uma síntese dessas transformações com base na interpretação de diferentes autores: Milton Santos, David Harvey, Zygmut Bauman, Pierry Levy e Rogério Haesbaert.
Para Milton Santos do livro a “A natureza do espaço” de 1996, as mudanças técnicas e a aceleração contemporânea implicaram na emergência de um período novo denominado por ele de técnico-científico-informacional. Este período cuja variável chave é a informação começa a se configurar no mundo a partir da década de 1950, ganhando seus contornos mais nítidos nos anos 1970. As principais características deste período são: crescimento do processo de urbanização, ampliação e aperfeiçoamento dos setores de informática, telecomunicação, biotecnologia e transporte.
No intuito de salientar o potencial interpretativo do período atual e o diferenciar períodos que o antecederam, Milton Santos divide a história da intervenção humana no espaço geográfico em três períodos. A saber, o primeiro caracterizado por um meio natural, o segundo por um meio técnico e por último um meio técnico científico informacional.
No meio natural, ou pré-técnico, uma primeira natureza, não transformada pelo homem, influência e constrange as ações humanas. Na escala local, predomina o tempo lento e o contato face a face. Nesse período, já é visível a interferência do homem sobre a natureza por meio de suas ferramentas de trabalho.
Com o desenvolvimento da maquinaria proporcionada pela grande indústria no século XVIII observa-se a crescente artificialização do espaço e a emergência de um meio técnico industrial. Nesse processo, marcado pela invenção do tear mecânico e da máquina a vapor, aumenta o domínio do ser humano sobre a natureza e desenvolve-se assim uma segunda natureza, produto da ação humana da qual os indivíduos tornam-se contraditoriamente também sujeito dos seus imperativos. Por consequência, o espaço natural torna-se progressivamente um espaço social. Nesse período, sem chamar a atenção da sociedade como no presente, a pressão do homem sobre a natureza torna-se mais intensa e os danos ambientais refletem na perda da qualidade de vida. Por exemplo, a injustiça social, descrita por F. Engels no livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” soma-se a injustiça ambiental visível na insalubridade do trabalho nas fábricas e nas péssimas condições de habitação, saneamento e na baixa qualidade do ar de Manchester.
No após 2° Guerra Mundial o progressivo desenvolvimento de objetos técnicos e informacionais, culmina, nos anos 1970 com e emergência de meio técnico científico informacional. Segundo Milton Santos a expansão do meio técnico científico não ocorre de forma homogênea, mas em pontos e manchas. No espaço geográfico das grandes metrópoles, por exemplo, é possível observar áreas luminosas marcadas por uma maior densidade técnica informacional e áreas opacas em que essa densidade é menor.
Segundo M. Santos do livro “Por outra globalização” de 2000, com a popularização da internet a partir do final dos anos 1980 nos EUA, as relações locais, face a face tornam-se cada vez mais relações locais e simultaneamente globais. A comunicação nas redes sociais, a ação das empresas transnacionais é um forte indicador destas transformações na qual o processo de individualização e diferenciação é contraditoriamente um processo de massificação e homogeneização. Nesse sentido, cabe atentar que a qualidade do acesso a informação sofre variação de acordo com a localização, formação e faixa de renda dos habitantes.
Ainda segundo Milton Santos, no atual período as fronteiras tornam-se mais porosas, todavia, de forma seletiva, uma vez que a livre circulação é para o capital e não para o migrante pobre que busca abrigo e uma nova oportunidade de emprego em outra localidade. Isto é o que observamos no drama dos imigrantes na fronteira dos EUA com o México e da Espanha com o Marrocos. Tal constatação no permite tirar o véu da globalização como fábula que afirma que vivemos em uma aldeia global marcada pela integração dos povos para constatarmos que a globalização é de fato uma perversidade.
Antes de avançar cabe diferenciar globalização de imperialismo, a globalização destaca-se pelo caráter planetário da tecnologia da informação e pela prevalência da ideologia de mercado. O imperialismo que vigorou do XIX até a 2º GM era marcado pelo controle físico do território através da força das armas de Estados imperialistas cujo objetivo era extrair materiais primas e manter um mercado de consumo cativo. A força das finanças anunciada por Lenin no livro “Imperialismo etapa superior do capitalismo” torna-se hoje hegemônica e pode se afirmar que o seu potencial se relaciona a instantaneidade na transmissão de dados e informações pela internet.
Partindo da teoria da regulação francesa, David Harvey do livro “A condição pós-moderna” de 1992, procurando avaliar os processos de aceleração contemporânea, nota que desde os anos 1970 vivemos a emergência de um regime de acumulação flexível, cuja política neoliberal e as técnicas de produção e organização toyotistas tornam-se um referencial fundamental para o desenvolvimento. A emergência deste regime ocorre após o esgotamento do regime de acumulação fordistas-keynesiana cuja marca era o protagonismo do Estado empreendedor, a produção em série fordiana e a rigidez das técnicas de organização do trabalho. Em oposição o regime de acumulação flexível caracteriza pela produção em escopo no âmbito de uma economia de escala.
Ainda segundo D. Harvey, a transição para outro regime de acumulação foi acompanhada pelo aumento dos fluxos de mercadoria, capital, informação e pela redefinição da base material do mundo em que vivemos por meio do signo da flexibilidade. Essas mudanças que alteraram nossa forma de viver e perceber os fenômenos da realidade foi expressa no conceito de compressão do tempo-espaço. Entende-se por compressão do tempo-espaço, a aceleração do tempo notada na rapidez da circulação de informações e mercadorias como decorrência da redução das distâncias ocasionadas pelo aperfeiçoamento da informática e dos transportes.
Este processo acompanha a deterioração das políticas keynesianas que estavam assentadas na força do Estado na economia, presente nos investimentos e nos mecanismos de controle do desenvolvimento do capital. Com a ascensão do regime de acumulação flexível ganha força abordagem neoliberal tributária das escolas de economia Austríaca e de Chicago. A força do ideário neoliberal encontra-se presente na valorização da livre iniciativa e da capacidade da economia se autorregular sem a influência do Estado, nota-se aí a retomada e a atualização do princípio da mão-invisível de Adam Smith.
Zygmut Bauman do livro “Confiança e medo na cidade” de 2009, avaliando o processo de aceleração contemporânea que marca a transição de uma modernidade sólida para uma modernidade líquida, nota a crescente demarcação de fronteiras simbólicas e materiais nas cidades contemporâneas. Isto tem levado o afastamento de pessoas pobres e migrantes de determinadas localidades cujo poder aquisitivo dos habitantes é maior, fenômeno complexo conhecido pelo conceito de gentrificação. Em vista desta situação Bauman aponta a proliferação dos guetos involuntários (favelas, cortiços) e dos guetos voluntários (condomínios fechados). Tal fenômeno que não é novo no capitalismo gera entre as pessoas desconhecimento e medo, intolerância e indiferença (mixofobia), principalmente para com as pessoas consideras supérflua para o sistema (moradores de rua, pessoas desempregadas a muito tempo, migrantes pobres, dentre outros). Em oposição a mixofobia existe a mixofilia, que representa a mistura e o sentimento de agregação e tolerância a diferença. A mixofilia sempre foi visível nos grandes centros urbanos, todavia, a ascensão de governos e movimentos de extrema direita fortemente atuantes na internet reduz o potencial agregador da mixofilia.
Pierry Levy do livro “Cibercultura” de 1999 destaca a emergência de um novo espaço, o ciberespaço da rede mundial de computadores (internet) e a emergência de uma cibercultura em decorrência da comunicação, principalmente oral, nas mídias digitais (redes sociais, sites de compra, canais do Youtube etc.).
Cabe atentar que a emergência de um ciberespaço na internet que transcende barreiras físicas encontra-se em relação ao espaço geográfico físico. Por exemplo, a produção de conteúdos digitais possui uma dada localização. Rogério Haesbaert no livro “O mito da desterritorialização” de 2004, contribui para avançar essa discussão, tendo como pressuposto o caráter material e imaterial das redes o autor procura articular o conceito de território com o de rede ao diferenciar um território zona de um território rede. O primeiro refere-se a base material, elementos fixos do território, o segundo, caracteriza o fluxo material e imaterial que percorre o território. Estes conceitos, identificam lógicas diferentes que não devem ser pensadas de forma dicotômicas uma vez que se complementam no território e no interior das regiões.
A concepção de território zona e rede favorece a compreensão de que as redes possuem uma base geográfica, portanto constituem o território. Por exemplo, a base material de uma rede de cidades, encontra-se articulada através de diferentes vias e fluxos de bens, serviços e informação. A variação da força desta articulação permite identificar dentro da rede urbana uma hierarquia de cidades. Os níveis desta hierarquia encontram-se diretamente relacionados a posição e capacidade de polarização, ou seja, de influência das cidades.
Em suma, diferentes perspectivas teóricas procuram explicar os desafios geográficos frente as novas tecnologias e o ciberespaço. A revolução dos meios de transporte, na comunicação e na produção, somado as políticas neoliberais, corroeu as bases do Estado de bem-estar social que vigorou nos países desenvolvidos no pós-guerra e renovou os nexos de dependência para boa parte dos países emergentes e subdesenvolvidos.
Nas cidades, o setor de serviços torna-se cada vez mais mediado pelas tecnologias da informação e desponta na geração de empregos e renda. Por outro lado, cabe atentar que o setor de serviços já sofre com a automação que reduz postos de trabalho, soma-se a isso os salários baixos quando comparados ao da indústria. A negatividade destas constatações não significa a supressão da resistência e da contestação do lado perverso do desenvolvimento, existem brechas e potencialidades para busca da inserção digna do migrante, dos trabalhadores e para o questionamento do poder dos grupos econômicos. A pluralidade dos movimentos sociais cuja atuação corre tanto em um território zona quanto em um território rede é um indicador de contestação e luta por uma outra forma de globalização.
Vídeo de apoio: O que é 'woke' e por que termo gera batalha cultural e política
Vídeo de apoio: Milton Santos - Por uma outra globalização - 2004
Bibliografia
BAUMAN, Zygmut. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. 18ª ed. São Paulo: Loyola, 2009.
______. O novo imperialismo: acumulação por despossessão. In. Os sentidos do mundo. São Paulo: Boitempo, 2020.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xama, 1996.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.
_____. Por outra globalização. São Paulo: Record, 2021.